Despersonalização da pessoa jurídica e responsabilidade patrimonial dos sócios
Fernando Borges Vieira[i]
Valéria Domingues Borges Vieira[ii]
Trata-se a pessoa jurídica de uma ficção, ou seja, uma criação do ordenamento jurídico, à luz da qual atribui-se personalidade à uma entidade abstrata. Em palavras outras, pessoa jurídica é a entidade criada para a realização de um fim e reconhecida pela ordem jurídica como sujeito de direitos e deveres, sendo importante destacar que a mesma conserva personalidade e existência distinta dos membros que a constituem.
Por conseguinte, na hipótese de uma pessoa jurídica figurar no polo passivo de uma demanda judicial e sendo a mesma compelida à determinada obrigação em razão de sentença condenatória, será esta a responder e não seus sócios.
Para que possamos compreender com a necessária razão, imagine-se o seguinte exemplo: O sujeito “A” ajuíza ação em face da empresa “B”, sendo esta condenada a pagar-lhe determinada quantia em dinheiro. Não cumprida a obrigação pela empresa “B”, o autor da demanda promoverá o cumprimento da sentença e buscará bens desta empresa que porventura possam responder pelo devido. Em um primeiro momento, o patrimônio dos sócios desta empresa não responderá pela dívida, pois – conforme já sinalizamos – a pessoa jurídica tem personalidade e existência distinta dos membros que a integram.
Assim a pessoa jurídica é protegida pela separação entre o seu patrimônio e os patrimônios particulares dos sócios, é o que a doutrina chama de “princípio da autonomia patrimonial”. Neste sentido, Fábio Ulhoa Coelho [1] considera que a personalização das sociedades empresárias decorre o princípio da autonomia patrimonial, que é um dos elementos fundamentais do direito societário. Em razão desse princípio, os sócios não respondem, em regra, pelas obrigações da sociedade. Esse princípio busca dar segurança aos empresários para a condução dos seus negócios limitando, assim, as suas responsabilidades e viabilizando o bom andamento da atividade empresarial.
Todavia, a proteção destinada ao patrimônio dos sócios não é absoluta. Caso haja abuso da personalidade jurídica – isto é, se houver desvio de finalidade ou confusão patrimonial – poderá ser judicialmente decretada a extensão da responsabilidade aos sócios e, por sua vez, o alcance do patrimônio daqueles que a integram.
Eis o que determina o artigo 150 do Código Civil:
CC, art. 50. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial, pode o juiz decidir, a requerimento da parte, ou do ministério público quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica.
Dessa feita, consoante o dispositivo supratranscrito será aplicada a despersonalização da pessoa jurídica ao se verificar o abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial – o dispositivo em questão, contém exigências maiores para a aplicação da despersonalização da pessoa jurídica e por isso é denominado de Teoria Maior.
O desvio de finalidade ocorre, frise-se, ao se praticar atos distintos de seu objeto social para prejudicar alguém e a confusão patrimonial se dá na hipótese do patrimônio do sócio se misturar com o da sociedade, lesando terceiro.
Segundo o entendimento do Superior Tribunal de Justiça[2], a teoria maior da desconsideração, regra geral no sistema jurídico brasileiro, não pode ser aplicada com a mera demonstração de estar a pessoa jurídica insolvente para o cumprimento de suas obrigações. Exige-se, aqui, para além da prova de insolvência, ou a demonstração de desvio de finalidade (teoria subjetiva da desconsideração), ou a demonstração de confusão patrimonial (teoria objetiva da desconsideração).
Em breves linhas, a teoria subjetiva leva em consideração o intuito do sócio ou administrador em frustrar o legitimo interesse do credor (desvio da finalidade da se com o objetivo de fraudar e abusar do direito). A objetiva, que é caracterizada pela confusão patrimonial, tem maior relevância em facilitar a tutela dos interesses de credores ou terceiros lesados pelo uso fraudulento do princípio da autonomia.
O instituto da desconsideração da personalidade jurídica pode ser conceituado, pois, como sendo a superação temporária da autonomia patrimonial da pessoa jurídica com o objetivo de, mediante a constrição do patrimônio de seus sócios ou administradores, alcançar o adimplemento de dívidas assumidas pela sociedade.
A teoria da desconsideração da personalidade jurídica (disregard of legal entity doctrine) incorporada ao nosso ordenamento jurídico tem por escopo alcançar o patrimônio dos sócios-administradores que se utilizam da autonomia patrimonial da pessoa jurídica para fins ilícitos, abusivos ou fraudulentos
Saliente-se, a despersonalização exige a demonstração efetiva da ocorrência de elemento objetivo relativo a qualquer um dos requisitos previstos na norma, caracterizadores de abuso da personalidade jurídica, como excesso de mandato, demonstração do desvio de finalidade (ato intencional dos sócios em fraudar terceiros com o uso abusivo da personalidade jurídica) ou a demonstração de confusão patrimonial (caracterizada pela inexistência, no campo dos fatos, de separação patrimonial entre o patrimônio da pessoa jurídica e dos sócios ou, ainda, dos haveres de diversas pessoas jurídicas).
A tipificação de hipóteses em que se autorizam o levantamento do véu da personalidade jurídica para atingir o patrimônio de sócios que dela dolosamente se prevaleceram para finalidades ilícitas. trata-se de regra de exceção, de restrição ao princípio da autonomia patrimonial da pessoa jurídica e a interpretação que melhor se coaduna com o artigo 50 do Código Civil é a que relega sua aplicação a casos extremos, em que a pessoa jurídica tenha sido instrumento para fins fraudulentos, configurado mediante o desvio da finalidade institucional ou a confusão patrimonial.
Com efeito, certo é que a mera inadimplência da pessoa jurídica e o encerramento das atividades ou dissolução, ainda que irregulares, da sociedade não são causas, por si só, para a desconsideração da personalidade jurídica.
Desta feita, importante conceber as seguintes ideias:
- E pessoa jurídica tem personalidade e existência distinta de seus membros;
- Em princípio, o patrimônio dos sócios não responde pelas obrigações da pessoa jurídica;
- Caracteriza-se abuso de personalidade o desvio de finalidade e a confusão patrimonial;
- Na hipótese de abuso de personalidade poderá haver a despersonalização da pessoa jurídica;
- A despersonalização da pessoa jurídica é uma exceção extremada;
- A despersonalização da pessoa jurídica deve ser decretada com máxima cautela; e
- Decretada a despersonalização da pessoa jurídica, o patrimônio dos sócios é alcançado.
Isto posto, a recomendação segue no sentido de que os integrantes de pessoa jurídica não se valham deste instituto para o fim de obter finalidades ilícita, pois a proteção patrimonial conferida não é absoluta, sendo certo que o patrimônio de cada qual poderá sim responder por obrigações daquela.
Por fim, sinalizamos que o tema ora tratado, mesmo que de forma superficial, considerou apenas o ordenamento jurídico civil. Tal consideração é importante na medida em que o ordenamento jurídico trabalhista possui dinâmica muito diversa, não se exigindo procedimento ou elementos para que o patrimônio dos sócios responda por eventual crédito trabalhista, já que se entende que houve contribuição do trabalhador na constituição do mesmo.
[1] COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito comercial. 2.ª ed. rev. atual. São Paulo: Saraiva, 2000. v. 2. p.15.
[2] REsp 279273/SP julgado em 04/12/2003.
[i] Advogado desde 1997 – OAB/SP 147.519 e OAB/RJ 213.221 – Sócio Administrador de Fernando Borges Vieira Sociedade de Advogados e Owner e Legal Coach de Lawyers Coaching/Desenvolvimento de Performance e Competências Jurídicas – Especialista em Compliance (Insper) – Especialista em Compliance Anticorrupção (LEC) – Especialista em Liderança (FGV – GVlaw) – Especialista em Direito Processual Civil (CPPG/FMU) – Certificado em Compliance Anticorrupção (LEC) – Personal, Professional e Leader Coach pela Sociedade Brasileira de Coaching (SBC) – Professor de Pós-Graduação Direito Processual do Trabalho – Diretor do Núcleo de Direito Processual do Trabalho da OAB/SP/Jabaquara – Membro da Comissão Especial de Coaching Jurídico da OAB/SP – Associado Instituto dos Advogados de São Paulo (IASP) – Associado à Associação dos Advogados de São Paulo (AASP) – Associado à Associação Brasileira dos Advogados Trabalhistas (ABRAT) – Associado à Associação dos Advogados Trabalhistas do Estado de São Paulo (AATSP) – Associado ao Instituto Brasileiro de Compliance (IBC) – Associado ao Instituto de Compliance do Brasil (ICB) – Palestrante OAB/SP e Escola Paulista de Advocacia – Autor e coautor de obras e relevantes artigos jurídicos.
[ii] Advogada Advogado desde 2001 – OAB/SP 182.701 – Sócia de Fernando Borges Vieira Sociedade de Advogados.
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