
Direito real de laje
Renata Cristina Marques Ferreira[i]
A constituição Federal prevê, em seu artigo 5º, a garantia de direitos fundamentais sociais tais como o direito à moradia, o qual está intrinsicamente ligado ao Princípio da Dignidade da Pessoa Humana.
A ausência de garantia desse direito, principalmente nas comunidades mais pobres e carentes das grandes metrópoles, gera um grande desequilíbrio na ocupação do espaço urbano, fazendo com que as construções irregulares se multipliquem diariamente.
A Lei de Regularização Fundiária ( Lei 13.465/17), fruto da conversão da Medida Provisória 759/2016, instituiu o chamado direito real de laje, incluindo a laje no rol dos direitos reais, mais especificamente no artigo 1.225, inciso XII, do Código Civil, e regulamentando-o nos artigos 1.510-A e 1.510–E, do próprio código civilista, garantindo a segurança jurídica às várias construções irregulares, que estão em desacordo com a legislação vigente.
O direito de laje, conhecido trata da possibilidade do proprietário de uma determinada construção-base ceder, mediante contrato, de forma gratuita ou onerosa, ao cessionário, o direito de construir na superfície superior ou inferior de sua edificação, gerando uma unidade imobiliária distinta daquela originariamente construída sobre o solo.
Por haver titularidades reais diferentes, o terreno da construção-base e a laje acedida possuem matrículas próprias no Cartório de Registro de Imóveis, sendo que na matrícula da primeira deverá constar a averbação do direito real de laje. Desta forma, tanto o proprietário quanto o lajeário poderão exercer os direitos e deveres relacionados a sua titularidade, usando, gozando e dispondo de forma autônoma e independente.
Uma primeira corrente afirma que direito real de laje é direito real sobre coisa própria. O principal argumento dos defensores desta tese é de que a cessão de laje permite abertura de matrícula própria no Cartório de Registros de Imóveis (artigo 1.510-A, § 3º, do Código Civil). Os artigos 227 e 228 da Lei 6.015/73, preveem que somente a propriedade imobiliária se sujeita a matrícula no Cartório de registros de Imóveis, fazendo-se presumir, portanto, que o dispositivo considera o direito de laje uma propriedade.
Para a segunda corrente, o direito de laje é um direito real sobre coisa alheia, com algumas especificidades que o distingue de outros direitos de mesma espécie. Em resumo, o titular do direito real de laje não é proprietário da unidade construída apesar de possuir amplas faculdades, similares àquelas que derivam do domínio.
Um ponto importante para os doutrinadores da segunda corrente é a sua disposição topográfica na legislação. Se o legislador quisesse caracterizar o direito de laje como direito de propriedade, o teria inserido no título referente às modalidades de propriedade.
Afirmam que o direito de laje constitui uma modalidade de direito de superfície denominada superfície por sobrelevação, prevista no ordenamento jurídico pátrio desde o ano de 2.001.
Ademais, de acordo com essa corrente, o proprietário da construção–base tem o direito de reaver a estrutura da coisa, englobando a laje. Já, o cessionário possui direito real sobre a coisa alheia, mas a norma não menciona o direito de reivindicar/reaver contra terceiros, fazendo jus, portanto, apenas ao ingresso de ações possessórias.
De acordo com o artigo 1.510-A, § 4º, do Código Civil, o direito real de laje não gera a atribuição de fração ideal de terreno ao titular da laje nem tampouco a participação proporcional em áreas já edificadas. Alguns juristas, ainda, refutam a natureza de direito real sobre coisa própria do direito de laje, ante a não inclusão do solo no seu objeto.
Por último, argumentam que a previsão da extinção da laje em eventual caso de ruína da construção principal (exceto no caso da laje instituída no subsolo não ser afetada pelo evento extintivo e nos casos de reedificação no prazo de cinco anos) demonstra que este direito é acessório e que o direito do proprietário da construção–base é principal.
Trata-se de propriedade resolúvel e, assim sendo, pode ser extinta com o advento do termo contratual como também pela eventual destruição da propriedade.
Vale lembrar que a aquisição dos direitos reais se dá de forma própria. Isto ocorre por conta de sua oponibilidade erga omnes, decorrente do sistema registral adotado pelo ordenamento jurídico pátrio. Segundo ele, a propriedade imóvel só é adquirida no momento em que é realizado o registro do título no Cartório de Registro de Imóveis.
É válida a aquisição do direito de laje por meio de um negócio jurídico, já que este serve para transferência, aquisição e modificação de direitos reais, sendo necessária apenas a declaração de vontade das partes. Todavia, a autonomia privada não é absoluta e ilimitada, devendo se basear nas normas de ordem pública sob pena de nulidade.
No que diz respeito aos negócios jurídicos constitutivos, modificativos ou translativos a lei exige a materialização da vontade expressa das partes através de escritura pública, exceto nos casos em que o valor do imóvel não exceda a trinta salários mínimos, hipótese em que se admite a realização por instrumento particular.
O direito de laje especificamente pode ser adquirido mediante compra e venda, doações e testamentos, sendo concedido em favor terceiros um direito real independente e autônomo.
A depender do caso concreto, poderá também, operar-se a aquisição por usucapião, observando-se as suas formas compatíveis (ordinária, extraordinária, especial, urbana, coletiva e extrajudicial) e o lapso legal da prescrição aquisitiva.
A questão foi, inclusive, tema da discussão na VIII Jornada de Direito Civil e culminou na redação do Enunciado nº 627 – “Art. 1.510: O direito real de laje é passível de usucapião”.
E mesmo que a cessão seja gratuita, a título de comodato, se o cessionário passa a se comportar como titular exclusivo da laje, alterando o seu animus e a própria natureza da posse precária até então exercida, poderá consolidar o seu direito sobre a construção sobrelevada (direito real de laje), mediante usucapião, contando-se o prazo de prescrição a partir do momento que deixa de se comportar como simples comodatário, por aplicação da regra intervesio possessionis[1]
Ademais, não há vedação ao reconhecimento de usucapião lajeária sobre bens públicos. Por ser o direito real de laje autônomo e independente ao direito de propriedade, a propriedade manter-se-ia sob o domínio da Administração Pública, não havendo a perda da sua titularidade.
A sentença de ação de usucapião ao reconhecer a aquisição originária da Laje, biparte o direito real, mantendo a propriedade do imóvel com o Poder Público e a titularidade da laje com o usucapiente.
O Supremo Tribunal Federal, no julgamento do REsp nº 218.324/PE, admitiu a possibilidade de usucapião do domínio útil dos bens públicos. Segundo o entendimento da Corte “o ajuizamento de ação contra o foreiro, na qual se pretende usucapião do domínio útil do bem, não viola a regra de que os bens públicos não se adquirem por usucapião”.
A Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do Recurso Especial nº 575.572/RS, com relatoria da Ministra Nancy Andrighi, reconheceu essa modalidade de usucapião. Segundo o referido Tribunal “é possível reconhecer a usucapião do domínio útil de bem público sobre o qual tinha sido, anteriormente, instituída a enfiteuse, pois nesta circunstância, existe apenas a substituição do enfiteuta pelo usucapiente, não trazendo qualquer prejuízo ao Estado”.
Outra forma de constituição do direito real de laje é por meio de declaração unilateral de vontade do proprietário do imóvel, desde que realizada em situações legalmente idôneas. É pacífico que a declaração unilateral de vontade, no negócio jurídico unilateral, produz efeitos constitutivos de direitos.
Por fim, o artigo 1.510-A, § 6º do Código Civil e o artigo 58§6º do Decreto 9.310/ 2018 estabelecem que “o titular da laje poderá ceder a superfície de sua construção para a instituição de um sucessivo direito real de laje, desde que haja autorização expressa dos titulares da construção-base e das demais lajes, respeitadas as posturas edilícias e urbanísticas vigentes.”
Estando presentes os requisitos legais para caracterizar o direito real, incluindo autorização do poder público respectivo, autonomia e independência funcional, o lajeário tem direito de ceder sua superfície para que sejam instituídas sucessivas lajes. São as chamadas lajes subsequentes ou lajes sucessivas.
O reconhecimento do Direito de laje e sua positivação são, sem dúvidas, um grande avanço justamente por ser um mecanismo hábil para a regularizar os imóveis que hoje se encontram em situação irregular, bem como atingir as funções sociais da propriedade que, não poucas vezes, são totalmente esquecidas por parte do Poder Público.
A aplicação do instituto nos casos concretos no decorrer do tempo permitirá que se avalie se o direito real de laje atingirá o seu fim essencial, qual seja, a regularização fundiária.
[1] Stolze, Pablo. Direito real de laje: primeiras impressões. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518- 4862, Teresina, ano 22, n° 4936, 5.jan.2017. Disponivel em: <https://jus.com.br/artigos/54951>.
[i] Advogada responsável por FBV Sociedade de Advogados em Santos e todo litoral paulista.
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